Realismo fantástico – E a lenda do gigante na madrugada de Maracás

Realismo fantástico

E a lenda do gigante na madrugada de Maracás

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Quando eu era criança, tinha uma lenda urbana que me encantava. Contava-se que em Maracás, na cidade em que morávamos, no interior da Bahia, um homem muito fofoqueiro tinha o hábito de sair noite funda para flagrar alguma moça namorando às escondidas.

Depois, espalhava a notícia, com sérios prejuízos para as mocinhas e suas famílias. Era temida a língua do tal homem, que saía mesmo quando era inverno e o frio aperta na cidade.

A lenda vem dos anos 1950, um tempo remoto em que as assim denominadas, moças de família, deviam casar virgens, embora as mais espertinhas dessem suas escapadelas para encontros noturnos com seus crushes. Se descobrissem, ficavam “faladas” e desacreditadas para um bom casamento futuro (aff, que tempos!)

A luz nessa época era desligada às 10h30. Enquanto a cidade dormia, o tal fofoqueiro se armava com uma lanterna e iniciava sua ronda já com um roteiro previsto. Começava sempre pela Rua do Moreira, uma ruela de comércio, sinuosa, que liga um bairro à praça principal (foto).

Mas eis que, numa dessas noites, a coisa se apresentou muito estranha. Na entrada da rua estreita tinha um homem enorme, com as pernas abertas e os braços cruzados, como a impedir a passagem.

O que impressionava era a altura desse homem. Muito mais que um gigante, era comparado à torre da igreja, o que tinha de mais alto na cidade. Via-se, por essa proporção exagerada, que não era coisa desse mundo.

O fofoqueiro se assustou, claro. Mas o vício dos flagrantes era maior que qualquer gigante no meio do caminho. Ele se auto convenceu que aquilo não era nada, talvez uma ilusão de ótica e tentou um outro caminho, em uma rua paralela, ao lado da prefeitura.

Novamente, o homem descomunal lá estava, na mesma pose dura e desafiadora. Dessa vez, o fofoqueiro se apavorou e saiu correndo, a essa altura com a certeza que alguma entidade poderosa o punia por aquele hábito equivocado.

Dizem que aprendeu a lição e nunca mais saiu sozinho à noite para curiosar e depois sair contando por aí.

Hoje sei que esta, e inúmeras outras histórias que ouvi na minha infância, eram do gênero Realismo Fantástico. As características estão todas presentes. No caso dessa história, tem o fofoqueiro, alguém de carne e osso, que todos conheciam, numa ação mundana, unida à figura onírica do homem enorme, de um mundo paralelo, mágico e cumprindo, na narrativa, uma missão sobrenatural.

Realidade mágica na vida cotidiana

Hoje em dia sou fã do Realismo Fantástico, tanto que uma coleção de contos que produzi, e que aos poucos estarão disponíveis aqui no Blog, são desse gênero.

Em um dos contos, A volta do tio Zezito (recomendo a leitura, basta clicar em Contos), tio Zezito, um senhor de certa idade morre, e um belo domingo volta pra casa. A família não demonstra surpresa com o fato de tio Zezito ter ressuscitado, porque está muito mais preocupada com o fato desse retorno atrapalhar os planos da herança, que já estava sendo distribuída entre os parentes.

Tenho que lembrar que este não é gênero mágico ou gênero fantástico puro e simples, quando a narrativa se passa, na sua totalidade ou na maior parte dela, imersa num universo onírico – como Os senhor dos Anéis, A bela e a fera, por exemplo.

No Realismo fantástico, é a realidade que avança sobre o mundo da imaginação, da magia e do encantamento, se incorporando a ela.

Como se, em uma realidade preservada, a magia ganhasse ainda mais força. Como se aquilo que se esconde, além da visão aparente, se revelasse. Como se uma super-realidade, oculta, se manifestasse.

Cem anos de Solidão, lançado em 1967, por Gabriel Garcia Márquez, é a obra considerada mais importante no gênero. De fato, uma obra genial, inspirada, e com o Realismo Fantástico no ápice de competência.

Saltos fantásticos da realidade sem provocar surpresa

Um elemento fundamental do gênero é manter a naturalidade naquilo que é contado, sem provocar surpresa, choque ou apreensão, por mais absurdo que possa parecer.

Na minha opinião, Saramandaia, de Dias Gomes, é uma obra tao valorosa quanto Cem Anos de Solidão. Uma mulher gorda a ponto de explodir em pedaços espalhados pela cidade inteira, um homem que não dorme há décadas, e as asas de João Gibão são ingredientes que temperam a vida cotidiana de uma cidade pequena do Nordeste brasileiro.

Também nesse caso o autor não explica nada, a interpretação é subjetiva, nos deixando livres para ampliar a consciência rumo ao desconhecido ou, simplesmente, se entregar sem pudores ao mundo da imaginação.

No fim das contas, tudo faz sentido, nada nos surpreende e entramos com toda a naturalidade no mundo da fantasia pelas vias da vida dita “normal”.

Voltarei ao Realismo Fantástico algumas vezes aqui no Blog. A próxima será depois de ler o pioneiro escritor do gênero no Brasil, Murilo Rubião, que produziu apenas 33 contos mas que, ao que consta, vale por uma obra vasta.

E você, gosta do Realismo Fantástico? Conhece a lenda do gigante de Maracás? Deixe um comentário aqui no blog!

Estou de fato curiosa.

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