O esqueleto

O esqueleto

Um dia depois de completar dezesseis anos Plininho almoçava com o pai e a mãe quando disparou:

– Eu quero ver o esqueleto do vô.

Os pais se entreolham, ali havia grosso problema.

Filho, não é possível. O vô Plínio ainda não é um esqueleto, essas coisas demoram – disse a mãe, no tom que se fala a uma criança.

E mesmo que fosse possível, quem morre deve descansar, não pode ser perturbado. O que você tem que fazer é juntar as fotos que tinha com o seu avô, por que você não faz um álbum? – emenda o pai.

Plininho não discute. Fixa-se, porém, nas palavras da mãe: o vô ainda não é um esqueleto. Com isso em mente, começa a pesquisar em quanto tempo uma pessoa enterrada tem suas carnes decompostas.

Decomposição inicial, putrefação, putrefação escura, fermentação butírica e finalmente esqueletização, a última etapa do processo. Plininho era bom de pesquisa e chegou a esse resultado, aqui resumido.

Era preciso esperar mais alguns meses até que restasse ossos limpos, cabelo, barba, dentes e cartilagens duras já devidamente livres do apetite das larvas.

Esse era o ponto que interessava a Plininho. Porque, após a dor excruciante pela perda, ele se consolava lembrando que o avô – um filósofo antes que religioso – lhe disse mais de uma vez que a morte não era o fim, que haveria uma outra vida, muito melhor, e reencontros com aqueles a quem se queria bem.

O avô não tinha mencionado nada sobre esqueleto, isso já era fruto da imaginação fértil e infantilizada de Plininho, que assim acreditava: com a estrutura material do avô por perto seria possível também um contato com a sua alma, insistentemente silenciosa.

Desde muito cedo já era evidente que Plininho tinha algum parafuso solto. A família bem o sabia, mas o menino foi demonstrando ao longo das etapas de escola que não era nada grave, porque suas notas eram boas, ele era ativo e fazia perguntas inteligentes. Tinha suas excentricidades, mas era o jeito dele – assim pensavam.

Quando chegou a adolescência, porém, os hormônios bagunçaram um pouco esse status quo. Plininho era um jovem desconfiado e pouco sociável. Não tinha amigos, as vezes estava muito animado, em outras, amuado, com o olhar perdido. Não havia agrado da mãe, das tias, dos primos, que o fizesse melhorar.

Era cheio de manias. Por exemplo, passou longo período em que comia somente feijão e sardinha no almoço e no jantar. De outra vez chegou em casa com umas latas de tinta, insistia em pintar as paredes do seu quarto de preto. De outra queria por toda força entrar no interior de um esgoto para conhecer os canos escuros dos subterrâneos.

Era incomum, singular, um tanto bizarro, o Plininho, com gosto a ver tudo com uma lógica própria, extravagante.

Só tinha uma pessoa que gozava da sua consideração e da sua brandura. O avô paterno, senhor Plínio, um professor de alto nível, um homem justo, generoso, uma alma moderada e sábia. Talvez pela sua sensibilidade fina, superior aos demais, Plininho confiasse apenas na pessoa que devia confiar.

Quando o jovem não queria comer por mais de um dia, era o senhor Plínio que o convencia a comer uma fruta, beber água, sair do estado de prostração. Quando Plininho insistia que não iria a escola, o senhor Plínio aconselhava, deixa passar, depois ele recupera as matérias...

Em período de férias, quando a família viajava, havia duas alternativas. Ou levava o senhor Plínio junto, ou Plininho ficava com ele. Ficar muito tempo sem o avô era impossível, comprometia a saúde mental já abaladinha do neto.

Laços profundos uniam aquelas duas almas em profunda sintonia. Plínio e Plininho, essências em simbiose, mestre e aprendiz, um experiente guiando o outro na sua imaturidade.

Ah, mas a vida sempre vem com as suas desditas. Senhor Plínio teve um infarto fulminante, dessas mortes em que em um dia a pessoa está, no outro é obrigada a estar embaixo da terra. Dessas mortes que podem até ser boas, porque evitam sofrimento para o doente e para os que o cercam, porque dispensa aquele processo lento, no qual intercalam-se esperança e certezas dolorosas – uma verdadeira tortura. Até nisso o senhor Plínio foi exemplar.

Foi-se sem aviso, certamente com grande preocupação em deixar o neto.

Plininho ficou calado durante o funeral. Não chorou, não lamentou. Estava tudo ali dentro dele, uma angústia que o comia, uma dor sufocada, um vazio imenso.

O tempo correu, a família sempre atenta ao comportamento do rapaz que alternava dias melhores com outros de mutismo e esquisitices.

Agora essa, a ideia de ver o esqueleto do avô.

O garoto pensava em providenciar uma cama extra no seu quarto, manteria o senhor Plínio próximo visualmente, enquanto seguiria buscando a comunicação além-túmulo. Imaginava o dia em que o avô, afinal, faria contato, tendo a sua ossada como uma espécie de veículo. Sim, bizarro, mas a lógica de Plininho era assim mesmo.

O garoto foi convencido a iniciar uma terapia e, para surpresa geral, aceitou. Mas a evolução era lenta, quase imperceptível, se é que havia.

A psicóloga ainda estudava o caso antes de apresentar um diagnóstico de uma perturbação dessas que se ouve falar e que levam o portador a ter ideias fixas e obsessivas.

Veio um feriado longo, a família se recolheria na chácara.

Plininho bateu o pé, não iria. Diante da firme resistência dele, consultou-se a psicóloga, que recomendou apenas que algum parente passasse de vez em quando, como se faz quando se deixa um gato ou um cachorro. Que passasse como quem não quer nada, depois todos se ocupariam de enviar mensagens, de ligar. Enfim, não haveria tantos problemas assim, até porque seriam apenas quatro dias.

Estava longe de ser um tipo dissimulado. Mas quando soube da viagem da família mostrou-se normalíssimo, convencendo a todos de um equilíbrio que, para ele, era um esforço, concordando inclusive em receber de bom grado quem viesse vigiá-lo.

Logo no primeiro dia em que ficou só fez uma noite claríssima, de lua cheia. A lua cheia costuma mexer com as estruturas nervosas dos loucos. Plininho, já se sabe, não era propriamente um louco, mas la luna piena não deixava de exercer inspiração à sua estranheza. Vinha tudo a calhar, porque aquele céu claro também estimulava, ainda que não fosse necessário, uma saída noturna rumo a um destino insólito – o cemitério.

Deu por volta de uma hora da madrugada. Dirigiu-se ao local onde o avô estava sepultado, armado de algumas ferramentas. O corpo do avô descansava em uma lápide que ficava em rés de chão, nas catacumbas da família. Era preciso abrir essa espécie de portinha pesada, puxar o caixão, abri-lo e retirar dali o senhor Plínio nas condições de esqueleto já que, tempo, a julgar pelas pesquisas, havia para isto.

O rapaz estacionou a bicicleta no muro do cemitério, abriu o pesado portão, que não dispunha de cadeados porque o muro era baixo e quem tivesse muita vontade de entrar, entrava.

Caminhou entre os túmulos sentindo um misto de excitação e alegria. A dificuldade de transportar o esqueleto inteiro era prevista, por isso levou alguns sacos pretos de plástico resistente. Ali depositaria os ossos e, em casa, com calma, montaria as peças.

Iniciou os trabalhos. Árduos trabalhos, as ferramentas ajudando.

Uma vez removida a portinha, a coisa ficou mais fácil porque não havia necessidade de erguer uma lápide pesada, bastava puxar o caixão. E foi isso que Plininho fez, empregando força, suando, o coração batendo forte.

A lua colaborava. O caixão agora estava ali, bem diante dele, ainda conservado, madeira de primeira.

Remover a tampa do caixão também não foi tão fácil. Mas, finalmente, ali estava o Sr. Plínio, alto e espichado, ainda com restos de terno e gravata, um cabelo grisalho gasto pelo tempo sepulto, uns dentes a mostra que pareciam sorrir. A imagem não chegou a chocar Plininho, que tinha calculado, inclusive, um possível abalo diante dessa primeira visão.

Calçado com luvas, começou por retirar aqueles restos mortais do terno, teria que limpar o esqueleto antes de desmontá-lo.

Um barulho de algazarra, porém, atraiu a atenção do rapaz.

De onde está ele divisa três vultos, três homens jovens que cruzaram o portão, falando alto. Lembrou-se de imediato de ter ouvido na televisão notícia de violadores de túmulos, vândalos drogados, um deles ex-presidiário, que buscavam nas sepulturas objetos de valor. Sabia que se tratava deles. Isso ele não tinha levado em conta no planejamento.

Tentou pensar rápido porque o esqueleto do avô estava ali e a tarefa estava prestes a ser concluída. Não era o caso de enfrentar aqueles caras duros, ferozes, sem compromisso com nada, prontos para tudo. Se esconderia.

Tarde demais. Um deles avistou o garoto e rapidamente o grupo chegou junto.

Opa, opa, tem concorrência – disse um deles, num tom debochado.

Um outro segurava uma garrafa que poderia ser uísque na mão. Começaram insultando Plininho.

Roubando túmulo, coleguinha? o tom era irônico, ameaçador.

– E olha só, usa luvas, você nunca usou luva, Ding Dong, hahaha, O moleque é profissa…

– Outro nível…hahaha

Começaram chutando o rapaz que até tentou dizer, é meu avô, mas as palavras entalaram na garganta e ali ficaram. Os sujeitos se excitaram com a novidade, tinha alguém para bater.

Enquanto um fortão agredia Plininho, os outros fizeram uma vistoria no corpo do senhor Plínio, ali exposto.

Pelo menos já adiantou o serviço – riram em coro.

Como nada encontraram de valor, iniciaram uma pressão para que Plininho entregasse aquilo que supostamente era deles por direito, conforme acreditavam. Um deles pegou a mochila do garoto com brutalidade, abriu e despejou tudo. Não tinha nada.

Plininho teve o impulso de correr. Fez muito mal porque um dos delinquentes sacou de uma arma e disparou dois tiros a queima roupa pelas costas. Plininho tombou. Os brutos temeram o barulho dos tiros e correram cemitério afora. Saíram arrancando em um carro velho, os pneus carecas gritando desaforados no meio da noite.

Passou-se um tempo curto. Plininho abriu os olhos e, lentamente, levantou-se do chão. A surpresa é que seu corpo, inerte, não acompanhou o movimento. Ele que sempre foi muito mais de um mundo metafísico do que desse, entendeu: estava morto. Achou curioso observar seu corpo caído e o sangue que corria. Mas não estava triste, nem desesperado.

Sua intuição, agora aguçadíssima, o guiou até uma fila de pinheiros bem ao lado da capela. Ali sentiu a voz que o chamava com suavidade.

Plico, filho, estou aqui.

Era a voz do Senhor Plínio, uma voz rouca de velho, que inspirava confiança. O chamava Plico, o apelido de sempre.

Vô…? Não te vejo… – respondeu com naturalidade.

Aqui, filho.

Senhor Plínio se mostrava por detrás de um arbusto. Avô e neto abraçaram-se longamente com lágrimas de saudade.

Quando enfim se separaram, Plininho comentou.

O senhor está ótimo, nem parece… e essa bata, que bonita, não é o terno que te enterraram.

Não, filho, não é. Mas não se impressione, tudo isso, roupa, aparência é uma ilusão para que você me reconheça. Daqui a pouco estaremos em um lugar diferente e não vamos precisar de nada disso.

Vô, tô muito confuso. Estou morto, não é?

Você se sente morto?

Não, pelo contrário.

Então, não diga bobagem. Está aqui, falando comigo, estamos juntos.

Plininho abraça o avô novamente, muito comovido.

Queria levar seu esqueleto pra casa, aí vieram aqueles caras, eu…

Eu sei, vi tudo. Os caras são malvados, mas cumpriram aquilo que era reservado ao nosso destino. Não há nada que lamentar. Depois, o que você prefere, o vô assim ou como aquele esqueleto magrelo?

Plininho sorria como quando alguém nos faz um elogio e a expressão nos trai em uma alegria espontânea, leve e sinceral, dessas que não se deve e nem se quer reprimir.

A noite avançava e a lua já tinha mudado de lugar. Estava menor, agora parecia indiferente ao episódio, avançando num quadrante do céu.

Os dois atravessaram o portão do cemitério, ali não havia mais nada a fazer. Não se deram nem mesmo ao trabalho de ir ver seus corpos, não interessava.

A cidade ainda dormia. O senhor Plínio avisou que antes que surgisse o primeiro sinal da aurora era preciso deixarem o mundo visível. Prometia contar tantas, tantas novidades ao neto, cujo estado de beatitude é difícil descrever.

Às sete horas da manhã as lojas começaram a erguer as portas, a cidade foi despertando do seu sono pouco justo.

Esse é o momento em que o senhor Roque, do alto dos seus setenta anos, adentra o cemitério municipal para cumprir seus deveres de encarregado. Cabe a ele cuidar de tudo ali, escalonar os coveiros, pagar a conta de luz, zelar pela paz dos mortos.

Já viu muita coisa, o senhor Roque. Mas, nesse início de manhã, chama sua atenção uma bicicleta encostada ao muro do cemitério. Normal, alguém acordou cedo para regar as flores de algum parente. Assim que entra, porém, logo nos túmulos próximos da entrada, do lado direito, avista um caixão fora do lugar em que deveria estar. Pensa de imediato nos profanadores, solta um palavrão suave.

Teria que ligar e chamar a polícia, sem tocar em nada, era esse o protocolo. Depois viria a família, o morto voltaria ao seu descanso, viria talvez algum jornal, ou rádio…

Mas quando se aproxima do caixão, a poucos metros, tem uma outra cena, esta mais complicada. Um jovem tombado numa poça de sangue que se coagula no chão. O senhor Roque constata, pelos vestes, que aquele é um jovem da assim dita família boa.

Dirige-se ao escritório pequeno e de pouca ventilação da capela. Dali vai chamar a polícia. A noite tinha sido agitada no seu ambiente de trabalho e o dia prometia. Logo naquela manhã, que ele não tinha dormido bem com uma dor no ciático, esse nervo danado que volta e meia inflamava.

Escrito por June Meireles com ilustração de André Caliman

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