Caetés – O primeiro livro de Graciliano Ramos

Caetés – O primeiro livro de Graciliano Ramos

Luísa quis mostrar-me uma passagem no livro que lia. Curvou-se. Não me contive e dei-lhe dois beijos no cachaço. Ela ergue-se indignada:

O senhor é doido? Que ousadia é essa? Eu…

Não pode continuar. Dos olhos, que deitavam faíscas, saltaram lágrimas. Desesperadamente perturbado, gaguejei tremendo:

Perdoe, minha senhora. Foi uma doidice.

E bom que se vá embora, gemeu Luísa com o lenço no rosto.

– Foi uma tentação, balbuciei sufocado, agarrando o chapéu. Se a senhora soubesse…Três anos nisto! O que tenho sofrido por sua causa…Não volto aqui. Adeus.



O primeiro livro escrito por Graciliano Ramos e lançado em 1933 foi Caetés. Os criticos falam mal ate hoje, atribuindo que o romance seria uma especie de treinamento para a sua valorosa obra, que depois alcançou reconhecimento mundial – traduzida em mais de dez idiomas. Entre os seus livros mais conhecidos estão Vidas Secas e São Bernardo.

Pois, não concordo. O escritor de talento já mostra a que veio. Neste trecho acima, por exemplo, na abertura do romance, já tem a pegada, o modo muito original de narrar uma cena – características da escrita do autor. Se a questão é a história em si, Caetés tem uma bem interessante, que pode ser banal, como muitas vezes é a vida, mas que fisga o leitor.

Os críticos que não acolheram a obra, vejam só, chegaram a dizer que em Caetés tinha muito mais de Eça de Queiroz que de Graciliano Ramos. Então, parecer um romance de Eça é um demérito?

Enfim, li e gostei muito como leitora, que se compraz com uma leitura fluida e prazerosa, com personagens bem construídos, com uma história que é muito fiel ao estilo Graciliano – frases curtas, econômicas, muitos pontos, pensamento claro, mesmo quando se trata de personagens como o protagonista, que é um que devaneia.

O vento zumbia no fio telegráfico. A porta do Hospital de São Vicente de paulo gente discutia. A escuridão chegou.

A traição e a fatalidade

A narrativa em primeira pessoa é de João Valério, um jovem introspectivo, romântico que se apaixona pela esposa do patrão. No caso, Luísa, que depois do beijo no cachaço, se rende a João Valeiro. O marido, Adrião, descobre pela via de uma carta anônima. E em vez de matar os dois, como um cabra macho daqueles tempos, Adrião se mata.

Veio-me grande lassidão, o subido afrouxamento dos nervos irritados. As imagens brutais debandaram. Luísa me inspirou imensa piedade. Achei-a pequenina e fraca, ali caída, numa confusão.

A história se desenrola em Palmeira dos Índios, pequena cidade de Alagoas, cidade que Graciliano esteve a frente como prefeito entre 1928 e 1930. Quem vai hoje a Palmeiras visita a biblioteca municipal, com o seu nome. Tem também uma estátua.

A narrativa traz muito dos costumes da época, a rotina da cidade pequena, o jeito de falar muito particular daqueles tempos. Por exemplo, pescoço ser chamado de “cachaço” é coisa antiga (vem dai o cachação, que é um pequeno ataque na área da cabeça).

O título do livro, Caetés, faz referencia a uma tribo indígena que comeu, por questões religiosas, o Bispo Sardinha, no seculo XVIII. A tribo e a história dos índios caetés apaixona João Valério, que quer escrever um livro com o tema. O livro não sai, mas já quase no final ele faz uma digressão associando seus instintos, seu lado selvagem, com a natureza dos índios que comiam gente.

No tempo da pensão e do armazén

Aspectos subjetivos levam um leitor a gostar ou não de um romance. No meu caso, boa canceriana que sou, adoro os antigos e a descrição do passado nas suas narrativas. Mas não é só isso. Penso que nas obras desses grandes autores está o registro documental de uma época, a dinâmica da vida comum, a visão de mundo, a cultura e o comportamento humano de um tempo.

Por exemplo, a função de João Valério no armazén Teixeira & Irmão é o de guarda-livros. Primeiro, temos a ideia do velho armazén, um local de balança vermelha, grãos vendidos a granel, um supermercado com vendedor no balcão. A segunda, a profissão de guarda-livros que nada mais é que o contador atual.

O retrato da época segue com a vida do protagonista na pensão de dona Maria José, as noites sem televisões, passadas em serões, em que se recita versos, toma-se café e fuma-se sem remorsos.

Nostalgia?

Pode ser, sim, saudades do que não vivi.

O grande pensador grego, Heródoto, considerado o pai da história, recomendava-nos a “pensar o passado para compreender o presente e idealizar o futuro”.

E para pensar o passado, é preciso visitá-lo.

Leia Caetés!

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