O dom de Gonçalo

O dom de Gonçalo

Gonçalo desligou a televisão, lavou o rosto com o sabonete próprio para a pele oleosa, escovou os dentes. Bebeu um gole d’água, apagou a luz. Deitou-se. Bastou pegar no sono e já começou o sonho.

Mauro, um colega seu do Banco, circulava de pé em um carro aberto pela cidade. Trazia as mãos ensaguentadas no peito porque tinha sofrido um atentado a tiro.

Esse carro andava de hospital em hospital e todos diziam que não havia vaga. Um grupo de pessoas urrava protestando porque o homem corria risco de vida enquanto buscava socorro.

No dia seguinte, a notícia. Mauro tinha sofrido um infarte fulminante durante a madrugada. A família alegava que houve demora no socorro médico porque o pobre homem, agonizando, foi obrigado a se deslocar para um segundo hospital e morreu no caminho.

Todo mundo sonha alguma coisa que acontece de vez em quando. Mas em Gonçalo era uma outra coisa, havia um dom.

As vezes o sonho anunciava alguma tragédia que só se concretizaria dias ou semanas depois. Gonçalo se angustiava. Uma vez sonhou com uma carruagem que caía num precipício e ali tinha o rei, a rainha e o séquito. Quando se aproximava do rei e lhe removia a coroa afundada na cara destruída, era a face de Ademir, um conhecido, que aparecia.

Como dizer isso a Ademir? Depois, ele sempre contava com a possibilidade daquilo não se realizar. No fundo, pela experiência de anos nessa misteriosa arte do devir, sabia que a chance do não acontecer era pequena mas se acovardava.

O acidente fatal de Ademir comoveu a todos porque era jovem, boa gente. A causa da morte foi um traumatismo craniano – a coroa do rei. Em Gonçalo a dor era cortante, embora sem remorso. Consolava-se, perguntado a si mesmo: Quem sou eu para controlar o destino?

Quando o sonho envolvia ele próprio, porém, a coisa mudava de figura. Seguia fielmente suas premonições e prevenia-se. E nem sempre aquilo que se apresentava durante os seus delírios noturnos era ruim.

Quando fez o concurso do Banco, por exemplo. Via-se em sonho conferindo a lista de aprovados pregada numa parede. Quando checava os nomes em ordem alfabética, encontrava apenas o seu nome. Gonçalo Luiz Souza Freitas. Percorria a lista e era somente esse nome, o seu, que se repetia.

Dez dias depois saiu a lista de aprovados com Gonçalo em primeiro lugar.

Na juventude teve um namoro sério, tinha planos de casar. Mas pouco antes do noivado sonhou que sua vida seria uma sucessão de desastres com essa moça.

No sonho, a jovem aparecia dentro de uma sala que tinha paredes, mas faltava o teto. Muito distraída, embalava um berço com uma criança disforme, com uma cabeça enorme. Ria, muito debochada, falando ao telefone com um amante. E não era apenas as imagens. Tinha a atmosfera. Gonçalo sentia sua humilhação, sua angústia e sua dor.

Terminou o namoro, ninguém entendeu nada e Gonçalo não explicou. A moça, coitada, debateu-se, implorou. Gonçalo resumiu assim:

– Não tem como dar certo.

A imagem daquela criança deformada o afligia. Ter filhos estava fora de cogitação. E como a maioria das mulheres querem ser mães, bateu o martelo: não constituiria família. E vivia na paz da sua solteirice.

Gerente de negócios de um Banco, Gonçalo era famoso pela sua habilidade com os endividados. Aquilo que era possível aprovar no Sistema, fazia. Sentado na sua mesa, virava o visor do computador para o cliente, havia esforço, transparência e boa vontade. O aflito saia dali vendo luz no fim do túnel, um chegou a desistir do suicídio.

Uma manhã de sexta feira, porém, acordou decidido que não iria ao trabalho. Ligou e avisou que não estava muito bem, que iria ao médico.

Deu-se a segunda feira, também não foi. Nem naquela semana, nem nas próximas.

No Banco apresentou um atestado dado por um psiquiatra seu amigo que indicava síndrome do pânico. Os superiores, os colegas, os clientes, lamentaram. Gonçalo fazia falta. Passou-se um ano. O que circulava é que esse homem ainda jovem era acometido cronicamente por depressão e ansiedade em alto grau.

Gonçalo passou à uma vida de reclusão como a mais obediente das freiras em clausura. Todavia, não estava mal como dizia o atestado que o aposentou precocemente, alguns anos depois. A sua inata habilidade em arrumar as coisas era agora usada para estabelecer uma vida quase normal. Planejava em detalhes a logística para tudo aquilo de que houvesse necessidade, sem ter que cruzar a porta da frente. Ou dos fundos.

Fazia seu check up anual, pagava a mais para que o sangue fosse coletado em casa para as análises, para que as consultas fossem domiciliares.

Fez até uma pequena reforma, colocando largas vidraças no apartamento para entrar mais luz.

Desfrutava da ampla varanda. Ali, no quinto andar, lia, tomava sol, apreciava a vista que dava para uma pracinha, passava horas vendo as pessoas entrarem na sorveteria aos domingos, as crianças birrentas acalmadas com açúcar.

Comprou uma televisão enorme, viu todos os filmes e séries possíveis, fez assinaturas de canais especiais. Devorava best-sellers, fez um curso de culinária on line e experimentava receitas de chef, rindo quando não acertava. Testava bons vinhos. Em tutoriais, aprendeu a cortar o próprio cabelo, no começo muito mal, com a prática chegando a um ponto quase profissional.

Comprou aparelhos, montou sua pequena academia e praticava exercícios com disciplina.

Recebia poucos e raros amigos, cada vez menos, até que ninguém o visitava.

Passou-se a primeira década. Sabia quem casou, quem teve filhos, quem comemorou o aniversário. Mas nunca ia nem mesmo aos funerais daqueles muito próximos.

Era agora um cinquentão grisalho, convicto da sua solitude. Aquela não era uma decisão desesperada, era serena, determinada e bem calculada.

Os dias engoliam as semanas, que engoliam os meses, e os anos iam sendo digeridos um a um, no tempo que nada espera. Gonçalo estava próximo aos sessenta anos. Comprou celular, instalou programas inovadores no computador. Era consciente, lúcido, metódico e produtivo na sua vida de claustro.

Os instintos o traíram uma única vez. Quando tinha 47 anos suas costas doíam e ele chamou uma massagista para uma sessão de shiatsu. A mulher, uma jovem robusta e baixinha, era de fato uma profissional do ramo. Estendeu um colchonete no tapete da sala, fez Gonçalo deitar e iniciou as manobras nas costas, umectando a mão com um óleo de aroma exótico.

Pediu a ele que se virasse, devia massagear na parte da frente. As mãozinhas hábeis deslizaram pela virilha e alguma coisa que dormia em sono profundo, despertou.

Gonçalo passou a vista no pênis ereto, desculpou-se embaraçado. Ela o tranquilizou, dizendo que aquela era uma reação normal. Ousada, evoluiu o contato para dentro da bermuda folgada, tocando as partes carentes do cliente. A transa foi rápida e intensa, com os dois meio vestidos. A moça era séria, mas essas coisas acontecem.

Pagou a visita em dobro, fingindo, com seu jeitinho conciliador, ter entendido ser aquele o valor. Ela recebeu sem olhar para o dinheiro.

– Quando precisar… – disse, muito calma e discreta, quando ele lhe abriu a porta da rua.

Gonçalo pensou na moça e rememorou o evento algumas vezes, tinha ímpetos de chamá-la novamente. Mas, não, era melhor evitar vínculos.

Nem tudo, porém, se pode controlar. Tinha também os dias de tristeza, de desânimo e tédio corrosivo, daqueles em que livros, televisão, vinhos caros e vasta varanda não são capazes de preencher o buraco fundo da alma – que anseia pela vida ordinária.

As vezes lhe vinha uma vontade de fazer uma coisa simples como correr por uma pista, por uma avenida. Sentir o vento, o sol na cara, parar cansado e tomar um caldo de cana, uma água de coco. Ir a um churrasco, embriagar-se de leve com uma cervejinha gelada sentindo o cheiro da carne que assa, os amigos que caçoam, enquanto um sambinha toca de fundo.

Da sua varanda ele via, quase todos os dias, um jovem magro e musculoso que passava na calçada. Pelo jeito era algum atleta treinando para uma maratona. Numa tarde de feriado, chovia fino e a solidão o corroía. Saiu na varanda, mas a sorveteria estava fechada, na rua não havia viva alma. Restava esperar aquele rapaz que passaria correndo, apesar da chuvinha. Ficou até quase escurecer e nada. Entrou. No sofá muito fofo da sala, desabou. Chorou enquanto teve lágrimas com soluções altos.

No dia seguinte, recuperou o ânimo. A prisão autoimposta já era suficientemente pesada, não valia a pena acrescentar angústias – pensava o habilidoso e equilibrado ex-bancário. E assim se foram três longas décadas.

Sim.

Trinta anos nos quais Gonçalo nunca, sob nenhum pretexto, atravessou a porta do seu apartamento nem mesmo para ir ao playground. Era agora um senhor de setenta anos, completados exatamente naquele dia. Acordou no horário de sempre, conferiu mensagens, congratulações dos poucos contatos que ainda restava.

Tomou banho, barbeou-se. Vestiu-se como quem se veste para uma saída de dia de semana. Era uma terça-feira.

Antes de abrir a porta e chamar o elevador, sentou-se na varanda. Achou as plantas secas, devia regá-las. Procrastinava, havia reserva para o hábito simples de sair de casa.

Sua mente o enganava. Gonçalo achava que poderia ser reconhecido por alguém do passado, ignorando os cabelos quase todos brancos, escassos, lambidos do meio da cabeça para trás, as pálpebras caídas, a face chupada pela falta de colágeno.

Um dos seus temores era encontrar um ex-colega, Luciano, que numa saída de fim de semana de tempos idos tinha angariado a simpatia de uma moça que estava na sua mira. O blefe da sua mente o fazia crer que Luciano poderia estar na próxima esquina, bonitão e serelepe, atraindo a atenção das meninas.

Mal sabia ele que Luciano, coitado, há tempo que tinha sofrido um derrame e lutava, com fisioterapia, para fazer a boca voltar ao lugar. Que a doença o tinha maltratado para além da sua idade e que era agora um velho feio e apagado, com uma paralisia no lado direito do corpo.

Gonçalo achou por bem colocar um boné azul e uns óculos rayban.

Acabou por finalmente sair, era por volta das dez horas da manhã. No céu poucas nuvens e um sol ameno, de começo de verão. Uma discreta excitação tomava conta do seu ser. Gonçalo sentia o movimento das pernas, que estranhavam o caminhar na calçada.

Trinta anos!

Foi direto à rua Marechal Deodoro, no centro de Curitiba, queria ver o Banco onde trabalhou. No lugar da casa antiga que abrigava a agência tinha um prédio de quatro andares com uma fachada espelhada em azul. No andar térreo, uma academia grande. Pessoas com garrafinhas neon nas mãos entravam e saiam, vestidas para o treino, homens musculosos, mulheres muito femininas, com suas roupinhas coladas e coloridas.

Seguiu para a Rua das Flores, rua tranquila de comércio onde não passava carro. Como a população tinha crescido!

Muita gente olhava o celular, ou falava ao celular, em pé, caminhando ou sentada nos bancos do jardim.

O mundo, que tantas vezes desejou ver e participar parecia imerso em um ar de indiferença, as pessoas interagindo apenas com seus pequenos aparelhos móveis. Uma mulher, muito famosa pela forma vibrante como gritava a loteria, continuava ali. Estava velha, sentada numa cadeira, embaixo de um guarda-sol. O que saía da sua garganta antes tão potente, era agora um grito rouco e com longos intervalos cansados.

Caminhou até a Boca Maldita, o lugar tradicional onde se reúnem os aposentados. Ali, entre anciões como ele, o ambiente era alegre. Falava-se de política, futebol, como eram vivos aqueles seus colegas, alguns bem mais velhos. Gonçalo experimentou alegria pela primeira vez desde que saiu de casa porque ali, entre os veteranos, havia um pulsar de vida.

Pediu um café com leite e um pão de queijo. Degustou esses sabores de rua, começava a se sentir ele também vivo, agora sim.

Decidiu que almoçaria fora naquele dia, aliás, voltaria para casa somente no início da noite. Perambulou. A vida real era outra, nada tinha a ver com aquela vista na TV ou na internet. Apreciava tudo isso com uma excitação contida e feliz.

Enquanto caminhava, ia fazendo planos para a semana. Iria ao shopping, entraria num provador. Quantas vezes perdeu peças compradas on line porque o número não dava certo. Trivialidades que não se percebe como são especiais porque são feitas no automático da vida comum.

Queria também ir ao santuário de Bom Jesus. Não era um grande religioso, mas acenderia uma vela de imensa gratidão pela sua liberdade. E pelo seu dom, que o tinha salvado.

Pelo meio da tarde, sentou-se na Praça Osório. Um homem de meia idade, um tanto confuso, sentou-se ao lado dele e começou a falar da praça, do petit-pavé e do chafariz art nouveau, com estátuas de sereias e um cisne trazidos da França.
O dia esquentava e dois meninos de rua brincavam com a água que espirrava.

Aquela imagem displicente dos garotos o remeteu diretamente ao seu sonho, ao maior deles, depois do qual nunca mais lhe vieram outros com a precisão dos pressentimentos. O sonho mais longo e mais claro que jamais teve, datado de exatos trinta anos, e que marcaria boa parte da sua existência e do seu destino.

Foi dormir no horário de sempre, lavou o rosto com o sabonete para controlar a oleosidade. Bebeu água, desligou a luz, adormeceu logo. O sonho começou.

Via-se no vagão de um trem, viajando. As poucas pessoas que ali estavam desciam numa estação e ele ficava sozinho. A porta que liga os vagões se abria e entrava um rapaz muito jovem, no máximo uns quinze anos. Tinha espinhas inflamadas com pontos de pus, como um adolescente. Usava um chapéu de cawboy e os olhos eram muito vermelhos, distraídos e injetados.

– É viciado – pensava Geraldo.

Sobre o chapéu, pensava: roubou.

O menino se aproximava com uma faca, que se transformava em quatro ou cinco facas muito afiadas. O clima era pesado, de medo e tensão, enquanto o trem circulava veloz.

O menino sorria de forma ameaçadora com dentes tortos.

Jogava as facas no chão e, do nada, surgia um revólver. Gonçalo tinha grande pavor porque sabia que aquilo poderia ser o seu fim.

Para se defender, escalava rápido uma árvore, como um tigre, essas coisas de sonho. Mas de um galho lateral surgia novamente o menino e Gonçalo constatava como aquele revólver prateado era novo e potente.

O galho se quebrava. Gonçalo caía por um longo tempo, como se entrasse num buraco negro. Quando finalmente sentia o chão, surgia novamente o jovem delinquente. Por intuição, sabia que o garoto queria dinheiro. Enfiava a mão no bolso, mas tinha esquecido a carteira em casa. De forma muito agressiva o menino apontava a arma, depois se distraía, pela ação da droga. Gonçalo aproveitava-se da sua lassidão e lhe tomava o revólver. Atirava no garoto, de forma instintiva, até as balas acabarem.

Acordou com suor na nuca, sentado na cama, o coração aos pulos, ouvindo ainda o rumor metálico das balas que penetravam a pele do rapazinho.

Bebeu água, acalmou-se. Voltou a dormir. O pesadelo retomou do ponto onde tinha parado. Uma mulher magra e desdentada chorava desesperada chamando-o de assassino. Era a mãe do bandidinho, exposto em praça pública, coberto de sangue. Gonçalo via-se algemado, acuado, uma multidão queria linchá-lo. Era defendido por policiais encapuzados como carrascos.

Depois se via num terreno estreito, sem casas, com uma espécie de cerca elétrica. A mensagem onírica informava que ele tinha sido condenado a exatos trinta anos de prisão e esperava ali para ser levado à prisão.

Sentia a sua desonra, o remorso, a vergonha e o medo de ser hóspede de um presídio dividindo espaço com toda sorte de homens vis, imerso num cheiro ocre de alho, gordura e sujeira cheiro de cadeia.

Como se lhe adivinhasse o pensamento, um dos policiais lhe dizia que ele poderia resolver tudo de um jeito fácil e rápido. Dito isso, apontava para o horizonte e Gonçalo visualizava uma fila de homens enforcados. A mensagem não poderia ser mais reveladora. Não suportaria a prisão e se mataria.

Acordou por volta das seis horas da manhã com certeza do que fazer.

Tomou café, comeu sua fruta.

Não esperou nem mesmo o início do expediente. Ligou no Banco, atendeu solícita Denise, a telefonista. Que avisasse a chefia que não se sentia muito bem e naquele dia teria que faltar.

Sua mente voltou à praça de petit pavè. Deu um longo suspiro.

Tinha cumprido a sua pena.

Levantou-se, caminhou com o andar paciente de velho até uma barraquinha de frutas. Começava a temporada de manga e também o mamão parecia bonito.

Ideia original de Maurizio Bruzzaniti

Texto: June Meireles

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