O casal nas pedras do Porto da Barra – E a visão embaçada de uma romântica

O casal nas pedras do Porto da Barra

E a visão embaçada de uma romântica

O ano exato não importa. A cidade: Salvador. Fato é que eu estava dentro do ônibus, voltando da faculdade, por volta das nove da noite, quando vi uma cena que me chamou a atenção.
No canto direito da praia do Porto da Barra, onde se ergue um paredão de pedras, vi um jovem casal sentado. Ambos tinham cabelos escuros e longos e estavam em silêncio (pelo menos é o que parecia). Havia integração, harmonia e uma calma de dois namorados contemplando o mistério do mar à noite – quase como se meditassem. A água do mar batia suavemente nas rochas. Lá longe, as luzes da ilha de Itaparica iluminavam o horizonte. Era quase verão e uma brisa suave circulava.

A cena ficou na minha cabeça e me veio a vontade de replicá-la. Eu havia um ficante na época — nada demais, mas era o que tinha para um experimento. Então, convidei-o a se encontrar comigo no Porto da Barra (eu morava muito perto). À noite, claro.
Nos encontramos na calçada, e eu sugeri que andássemos até as pedras e apreciássemos o mar. Ele, meio de má vontade, sem entender muito aquele desejo exótico, me perguntou o motivo. Eu não contei. Fomos.

A coisa começou a entortar quando vi que as pedras nas quais o casal estava sentado eram bastante irregulares. Tivemos que fazer um esforço até conseguir uma que fosse mais plana — ainda assim, bem desconfortável, pois, além de tudo, estavam úmidas.
Ele começou a reclamar, mas eu estava determinada — a cena anterior ainda viva na minha cabeça. Era só uma questão de alguns minutos até que ele entrasse no clima e a atmosfera misteriosa e bela se instalasse.

Cheiro de urina quebrando o clima

A realidade, porém, se apresentava cada vez mais distante do quadro idealizado. Um forte odor de urina subia das pedras, como se aquilo fosse um banheiro a céu aberto. O cheiro intenso impedia que a brisa chegasse aos nossos sentidos. Havia latinhas de cerveja e embalagens de salgadinhos jogadas ali. O crush me perguntou, intrigado e impaciente:
— Por que você quis vir aqui? Quer me dizer alguma coisa? Se for, fala logo, porque esse lugar é perigoso à noite, podemos ser assaltados.

Que desilusão! Estava odiando as perguntas secas, a sujeira, as pedras íngremes, o cheiro de mijo. Odiava até o mar, que parecia agitado e impaciente.
Após alguns minutos (pode ter sido cinco, no máximo), e com o clima pesando, eu mesma sugeri que saíssemos dali.

O crush deu uma desculpa, pegou o primeiro ônibus que passou. Vi quando se sentou na janela e me parecia meio aliviado. Nunca mais deu as caras, teria me achado meio louquinha? Enfim, nada a lamentar. Na cena noturna, ele era só um figurante do meu filme.

Na época, eu sonhava muito com o amor romântico, a alma gêmea e derivados. Hoje, faço uma análise madura do que se passou. Nosso subconsciente está repleto de imagens de filmes, novelas, publicidade e todos os elementos de uma cultura romântica. Naquele quadro, faltava apenas a trilha sonora, pois, de resto, parecia compor uma bela passagem de um filme, assistido num cinema de rua, numa tarde de outono.

Vai saber o que se passava, de fato, naquelas pedras do Porto da Barra? Talvez aqueles dois estivessem terminando o relacionamento. Talvez ele a tivesse magoado e estivesse tentando consertar as coisas. Talvez estivessem tristes por um problema qualquer.
E eu, o que vi com meu olhar seletivo? Bem, você já sabe.
E fui além. Na minha maluquice romântica, acreditei que poderia replicar um suposto sentimento puro e indelével que supunha ter visto naquele casal.

Afinal entendi que as experiências são únicas, individuais — não devemos nos comparar nem imitar ninguém, vai dar ruim. Ao longo dos anos, fui aprendendo que o amor romântico não passa de uma visão imatura — para mim, ultrapassada — de entender o relacionamento entre duas pessoas.
Como nada se perde, tudo se transforma, valeu a pena viver essa experiência. Rendeu esta crônica e uma lembrança divertida dos meus dias (felizmente esgotados) de romantismo juvenil.

O romântico está num campo no qual a matéria não faz parte. Nada de cheiros ruins, pedras molhadas e desconfortáveis — somente um amor puro, permeando tudo como uma energia etérea.
Em outros tempos, a ideia “um amor e uma cabana” me bastaria.
Ja hoje, eu perguntaria de pronto:
— Mas, como é o banheiro?



Texto: June Meirelles

Foto: Bingo Designs Pixabay

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Abraço, até uma próxima.

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