Noites de sábado custam a acabar
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Orivaldo chegou cinco minutos antes da hora marcada. Encontrou Val quase pronta, faltava só o perfume e a pulseira. Depois de testar algumas escolhe uma preta e larga, com friso dourado.
– Ainda bem que você não atrasou. Hoje o roteiro é longo.
– A senhora sabe que eu não gosto de atraso, dona Val. Aonde vamos dessa vez?
– Ao teatro Castro Alves, show de um cantor francês. Vamos passar para pegar Lúcia, Edilene e Claudia.
– É só me passar o endereço de dona Claudia, as outras eu me lembro.
– Está morando longe, em Piatã, mas vamos deixar ela por último, assim damos um passeio.
– A senhora que manda.
Forte e viril, pele lisa cor de chocolate, de poucas palavras, Orivaldo passa a impressão de um homem pronto para uma defesa precisa, caso seja esta a necessidade.
A agenda andava cheia.
Nem chegou a sentir falta do emprego como motorista na casa de uma família rica, levando as crianças aqui e ali. A coisa andou de boca em boca e engrenou. Era chamado para conduzir o seu Elmo para o médico, a dona Carminha para o banco, o filho quarentão e cadeirante de dona Geni às sessões de fisioterapia.
Transportava a todos com paciência e gentileza apoiando, com seu braço robusto, a lenta caminhada dos anciões e inábeis. Nesta noite, não era o caso. Aos sessenta e quatro, com uma pressão alta controlada, Val estava ótima.
As amigas estão reunidas no fundo do carro. Dona Val é a única no banco carona. Inclinada para o banco de trás, interage com as amigas, o quinteto parece meninas que saem para uma balada. As falas e os perfumes se misturam, estão excitadíssimas com o show de Charles Aznavour. Lúcia, a mais velha, vestida com uma blusa cheia de brilho, puxa uma garrafinha de uísque da bolsinha também brilhante.
– Ué, já está bebendo? – Edilene pergunta.
– Tudo sob controle, minha filha, o médico liberou, graças a Deus.
Lúcia passa a garrafinha milagrosa para as amigas. São tragos com vontade. Em dez minutos, estão todas calibradas, alegres e ainda mais falantes.
– Orivaldo, o rádio tá quebrado, por acaso?
– Ligo agora mesmo dona Lúcia – ele diz, enquanto gira o dial. Para numa estação de música eletrônica.
– Não, tá doido rapaz? Tuch, tuch eu não suporto – protesta Lucia.
O motorista continua a girar o dial, para numa rádio de notícia.
– Notícia não, né Orivaldo, a gente tomou uísque… – Riem em coro.
Axé, jazz, nada agrada, o diálogo segue.
– Quer saber, desliga esse rádio – sentencia Val.
– Sim, a gente está indo ouvir Aznavour, não precisamos dessa música de quinta categoria agora. Sossega a periquita, Edilene.
Nova explosão de risadas.
Orivaldo sorri, divertido com o entusiasmo das senhoras nesta noite de sábado.
A festa das veteranas continua no teatro. Ao som de La bohème, a emoção chega ao ponto máximo.
– Foi bom o show, dona Val? – Orivaldo pergunta, com seu jeito manso.
– Meu Deus, estamos em êxtase.
Seguem comentando o show.
– Não achei ele velho, não.
– Tá ótimo! Como diz o outro, ainda dá um caldo.
– Você viu aquela mocinha gritando?
– Horrível. Que vá gritar em show de rock. Falta de educação.
– E a outra que levou aquele menino retardadinho? Pra que levar, gente? Teve uma hora que ele queria sair por força e a avó ali, tentando segurar.
– Ainda tem uísque?
– Tá na mão – diz Lucia, sacando a garrafinha da bolsa.
– Eu não quero mais. Amanhã tenho que levar Aline pra fazer concurso, Léo está sem carro – antecipa-se Val.
– Pois eu quero. As noites de sábado são sempre especiais, não deviam acabar. Depois, hoje posso beber a vontade. Só quem não pode beber aqui é Orivaldo – Edilene completa, enquanto entorna os últimos goles. Quando fala no motorista, pisca para ele no retrovisor, jovial.
– Você bebe, Orivaldo? Ou é evangélico?
– Não sou crente, não senhora. Tomo minha cervejinha no domingo.
A noite declina e também a energia do grupo baixa um pouco. Quando chega perto do condomínio de Lúcia, indaga-se:
– Lúcia, soube de um assalto aqui perto, prenderam uma família dentro de casa. Não é perigoso morar assim, em casa?
– Não, o condomínio é cheio de câmera. Também contrataram um segurança fortão que passa a noite inteira de moto, fazendo a ronda.
– Um rapaz fortão, é? Qualquer coisa ele te ajuda a entrar e já fica por lá mesmo – uma das amigas brinca.
– Deus me livre, já pensou se me ataca?
– Aí você solta uns fogos pra comemorar – diz Edilene.
– Depois passa nosso contato – Val completa.
Novo coro de risadas.
Val é a última do roteiro. Orivaldo se antecipa, abre a porta, é um ritual do qual faz questão.
– Eu subo com a senhora.
– Nada, Orivaldo, não precisa.
– Eu fico mais tranquilo – diz, solícito.
Val estranha quando abre a porta e ele entra.
– Quer alguma coisa, uma água?
Oferece por educação, como a dispensá-lo. A expressão de Orivaldo é enigmática.
– Não quero nada, não. E a senhora, quer companhia?
Gira devagar, com malícia, a pulseira preta de friso dourado no antebraço de Val.
– O quê que há, Orivaldo, boa noite, pode ir – fala séria e um tanto sem graça.
– Tem certeza? – Ele indaga com voz determinada, olhando-a nos olhos, sedutor.
– Tenho sim, estou cansada, pode ir.
Mas ele a abraça bruscamente.
– Pois eu acho que você quer que eu fique – A tratade você, o tom é atrevido.
– Deixa de bobagem, Orivaldo, vá para sua casa.
Os braços fortes avançam. Ele inclina a cabeça dela, enfia a língua na orelha.
– Vou te fazer gozar gostoso. Eu sei que você quer, ninguém precisa saber… – diz num sussurro, a voz alterada.
Não era Orivaldo que estava ali. Era outro personagem, ou talvez o verdadeiro? – pensava Val em fração de segundos.
Sentia-se diante de um estranho, estava apavorava. Também não gostava do que via nos olhos dele. Um vazio de luxúria, acompanhado de uma respiração ofegante, plena de um instinto animal.
– Que é isso, rapaz, você não quer que eu grite, quer? – tentava argumentar em tom amigável.
– Acordar os vizinhos a essa hora, pra quê? Vamos ali pra cama, você me chupa gostoso…
Orivaldo impõe sua força sobre ela. Continua a sussurrar palavras grosseiras que não lhe despertam um pingo de desejo. O motorista, ou quem quer que fosse, ultrapassava todos os limites.
Deixa-se, no entanto, empurrar para o sofá. Pensa em gritar, mas lembra-se das críticas que fez ao síndico na última reunião, imagine a essa hora da noite esse escândalo. Sem falar que Orivaldo poderia ter uma reação violenta.
Enquanto ela pensa na melhor forma de escapar, ele avança. Apalpa os seios, enquanto a outra mão tenta avançar embaixo da saia. Pela pressa dos movimentos, Val calcula como o próximo passo será doloroso. Age por impulso. Pega um bibelô na mesinha de canto, objeto pesado, acerta a fronte de Orivaldo, que tem os olhos semicerrados em um desejo bestial.
Aplica a primeira pancada no lado direito da testa, mas ele não sente tanto. No entanto, está surpreso. Ela aproveita e lança mais duas pancadas fortes próximo ao supercílio, o sangue esguicha. Ele cai pesado no tapete, impressionante como sangra. Tenta abrir os olhos, ela dá o último golpe, forte, perto da nuca.
Em choque, com o coração aos pulos, Val sente que sua pressão sobe. Começa lentamente a pensar o que fazer, ligar para a polícia, chamar um parente, não tem como resolver isso sozinha, é certo. Com a mente aturdida, sente o toque de um celular. Demora a perceber que o som vem do bolso na jaqueta de Orivaldo. Pega o aparelho e clica na mensagem.
“Está chegando? Não demora senão o gelo derrete…”
Acompanha a mensagem a foto de um balde com champagne e duas rosas vermelhas ao lado.
Val pensa que aquela coisa brega venha de uma namorada do motorista que o espera ansiosa.
Quer ver a pessoa, clica na foto. Arregala os olhos quando vê a imagem sorridente da amiga Edilene.
Entende, afinal, porque as noites de sábado custam a acabar.
Escrito por June Meireles com foto de Inga Seliverstova