Casa de Pensão, de Aluísio Azevedo – E o Rio de Janeiro de 500 mil habitantes

Casa de Pensão, de Aluísio Azevedo

- E o Rio de Janeiro de 500 mil habitantes

A cidade do Rio de Janeiro tem hoje uma população de 6,2 milhões de habitantes (censo 2022). Mas houve um tempo em que a então capital do país tinha 500 mil habitantes – mais ou menos o que é Florianópolis hoje.

Estamos falando do ano de 1884, quando Aluísio Azevedo, (esse belo bigodudo da foto), lança Casa de Pensão. O romance tem uma história muito interessante que falamos a seguir, mas o leitor pode desfrutar também da nostalgia de uma época, os costumes, os tipos e a vida cotidiana do Rio antigo, descrita à luz do Naturalismo e do talento desse escritor.

A história é, também ela, inspirada na realidade, um crime famoso ocorrido de fato na capital. O protagonista é Amâncio, um rapaz muito jovem que se muda do interior do Maranhão para o Rio de Janeiro do século XIX, ainda monarquista e escravocrata.

Desmiolado, imaturo e sem qualquer foco em qualquer coisa que valha a pena, a principal ambição de Amâncio é desfrutar ao máximo sua juventude e dar vazão à sua testosterona juvenil.

Oficialmente, diante do pai severo, ele vai ao Rio de Janeiro para estudar Medicina. Sem a mínima vocação, morre de tédio com as aulas teóricas e o estudo de anatomia nos cadáveres. De início, hospeda-se na casa de um amigo do pai, o Campos, muito regrado, disciplinado e tradicional. Tudo o que Amâncio não quer.

Queria ver de perto o que vinha a ser essa grande Corte, de que tanto lhe falavam; ouvia contar maravilhas a respeito das cortesãs cínicas e formosas; ceias pela madrugada; passeios pelo jardim botânico, em carros descobertos, o champanha ao lado, o cocheiro bêbado; e tudo isso o atraia em silêncio, e tudo isso o fascinava, o visgava com o domínio secreto de um vício antigo.”

As coisas caminham num ritmo muito do sem graça até que Amâncio encontra, por acaso, o Paiva, um conterrâneo com mais tempo no Rio. Pois é Paiva que o apresenta a João Coqueiro, dono de uma pensão. As pensões, diga-se de passagem, eram meios de hospedagem muito comuns na época, com refeições completas e hóspedes que ali passavam longos períodos, e se sentavam à mesa juntos, como uma família.

Começa, finalmente, a vida que a Amâncio interessava. Festas, bebedeiras, aventuras amorosas, ausências das aulas, irresponsabilidade e perigos. Envolve-se com Lúcia, mulher do Pereira, um casal de trambiqueiros que vive na Pensão.

Realista, a história não acaba bem

Na vida irresponsável, mas bem provida com dinheiro enviado pelo pai, Amâncio vai aproveitando la bella vita, cercado de amigos inescrupulosos que o exploram, incluindo a astuta mulher do Pereira. Além de tudo, João Coqueiro, o dono da Pensão, tem planos para a riqueza que cerca Amâncio: casá-lo com sua irmã, a igualmente interesseira, Amélia.

Adianto que a história não acaba bem e isto se deve muito ao fato de ser uma obra Naturalista. Aliás, é Aluísio Azevedo quem inaugura o Naturalismo no Brasil, com um romance muito famoso, O mulato.

O Naturalismo é uma Escola Literária lançada na França por Émile Zola e salvo uma ou outra característica, vem a ser a mesma coisa do Realismo.

E nada melhor para entender uma corrente cultural do que compará-la ao que veio antes. Nesse caso, o Romantismo.

A obra que inaugura o Romantismo no Brasil, em 1836, é Suspiros Poéticos e Saudades, de Gonçalves Magalhães. O título resume bem as características do movimento: Subjetivismo, emoções à flor da pele, idealização da mulher, nostalgia da infância, fuga da realidade, entre outras.

Veja o trecho de Iracema, José de Alencar, publicado em 1865, na primeira fase do Romantismo Brasileiro. Em comum a descrição de uma figura feminina.

Além, muito além daquela serra, que ainda azula no horizonte, nasceu Iracema. Iracema, a virgem dos lábios de mel, que tinha os cabelos mais negros que a asa da graúna, e mais longos que seu talhe de palmeira. O favo da jati não era doce como seu sorriso; nem a baunilha recendia no bosque como seu hálito perfumado.

(…) O pé grácil e nu, mal roçando, alisava apenas a verde pelúcia que vestia a terra com as primeiras águas.

E um trecho de Casa de Pensão, Naturalista, cerca de 50 anos depois:

Foi recebido cerimoniosamente no salão por uma mulheraça muito gorda, de lunetas, extremamente decotada, mostrando entre as almofadas do peito ramificações de veiazinhas escarlates…

(….)Em um dos braços luzia-lhe uma joia e, por debaixo do vestido de cambraia, aparecia-lhe o pé redondo e empantufado de veludo azul.

Tinha voz grossa, cheia de uu, e o lóbulo do queixo coberto de penugem negra.”

O livro é uma delícia de leitura, atrativa e interessante. Sua força está justamente no estilo literário que a move. Comparando a uma self no Instagram, o Naturalismo é aquela foto de uma pele com poros, um olhar caído, uma sobrancelha torta. Sem firulas, sem maquiagem, sem filtro, com a força e a beleza da vida real e concreta.

Pra encerrar, veja o trecho dessa carta, enviada pelo dono da Pensão a uma de suas hóspedes, a caloteira Lúcia, em um retrato fiel do período. Atenção ao detalhe da mulata que deve servir para garantir a dívida:

Sra. Lúcia Pereira. Há quatro dias entreguei a seu marido uma segunda conta do mês passado e deste mês, e, visto que ate agora não tenho recebido senão desculpas e promessas, tomo a liberdade de participar-lhe que, de hoje em diante, não posso continuar a lhes oferecer comida e que preciso urgentemente do cômodo ocupado pela senhora e seu marido. Espero, pois, que ate amanhã esteja o quarto número 8 desembaraçado e a minha conta selada e assinada pelo Sr. Pereira; sem o que, pesa-me di-lo, não consinto que V. Sas. levem consigo a sua mulata, que é o único bem de que posso lançar mão para garantir a dívida.”

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