A oficina

A oficina

Ilustraçao

Aos quarenta e sete anos e uma pança disforme, veio o infarto. Não se pode dizer que fulminante porque ainda sofreu por horas até que o cardio, com aquele jeito dos médicos, comunicou à mulher que fizeram o possível, mas havia um comprometimento importante das artérias. Sinto muito – com estas duas palavras o assunto foi encerrado.

Mario tinha passado desta para algum lugar desconhecido, terreno do além, do ignorado, do incerto. Os amigos lamentavam, a mulher engolia as lágrimas quando teve que informar ao casal de filhos que o papai já era.

O morto sofreu especialmente nesta parte. Sim, porque ele acompanhava tudo como se ali estivesse. Passou algumas horas numa espécie de sono que a tudo anula como uma anestesia geral. Porém, como se acordasse de repente, passou a acompanhar todo o trâmite do próprio funeral.

Detestou o terno que escolheram para metê-lo no caixão, logo aquele, que lhe estufava a barriga. Sentiu, impotente, um incômodo quando viu um colega do trabalho que vivia lhe perseguindo entrar cabisbaixo, dissimulando sentimento. Irritou-se com a quantidade de flores que o cercava. Sentia o cheiro desse exagero e pensou que bastou morrer para ninguém lembrar que era alérgico. Contudo, não espirrou como antes.

Olhou sua cara, balofa como a de um adolescente guloso, atribuiu ao processo de morte, aquilo era retenção de liquido, inchaço.

Leu a mensagem que vinha na coroa de flores enviada pelo chefe, em nome da firma. Riu com ironia quando viu o texto padrão, único para qualquer um que deixasse esse mundo.

A gente é um número, nada mais – constatava.

Mario distraia-se vendo assim os detalhes do seu velório como a fugir da dura realidade.

Tinha morrido.

Não iria mais pescar truta com o menino mais velho no domingo. Não viraria mais a pequena de ponta cabeça, ah, ela ria tanto e pedia de novo, de novo…

Não comeria o bolo que sua mulher, bem feita de corpo, dona de casa exemplar, fazia religiosamente aos sábados e que ele comia até se fartar. Deixava seu arroubo às comidas gordurosas, aos refrigerantes, aos doces, ao churrasco, a cerveja que nunca bastava. Ficava para trás os prazeres desse mundo que tanto apreciava com gosto e exagero.

Era duro.

Entrou num pranto angustiado, chorava o seu fim, definitivo, irrevogável. Apavorou-se quando lembrou que o passo seguinte seria a sepultura. Camadas de terra naquele corpo inflamado e, daqui a pouco, podre. Como seria atravessar esta parte, certamente fétida? Teria olfato para sentir o odor repugnante da morte?

Como se lhe respondessem, viu-se, de repente, estirado em uma maca, num ambiente que era próprio o de uma oficina mecânica muito moderna. Ali havia prateleiras com o que parecia ser órgãos humanos conservados em um líquido lilás. Havia rins, coração, pedaços de músculos, e um conjunto de olhos muito atentos que, no entanto, não o espiavam. Ao seu lado tinha outros corpos, certamente de mortos como ele, cobertos por uma espécie de lençol plástico fino e transparente.

O que parecia ser o chefe era um homem de meia idade, careca, com algum resto de cabelo na parte de trás. Vestia um jaleco branco. Usava umas luvas que não eram aquelas de médico em hospital, pareciam mais luvas de mecânico, embora de um material mais apurado. Usava também uma máscara de proteção no rosto, parecida com aquela que se usa para fazer pintura em carro.

Dois ajudantes ergueram essa espécie de maca a altura de um aparelho que emitiu um som fino. Uma luz vermelha iniciou um escâner do organismo de Mario, que assistia à cena, estupefato. As imagens surgiam em uma tela que mostrava seus órgãos em 3D, na verdade algo ainda mais avançado, em clareza e precisão, que não se conhece ainda.

Ficou chocado ao ver suas entranhas pela primeira vez na vida. Tinha dificuldade com muitas das engrenagens as quais assistia, embora fosse claro que aquele corpo de carne, osso e sangue se tratava de uma máquina que tinha uma lógica detalhada, minuciosa, espetacular.

Viu sua pança com um grande volume de gordura amarela e não acreditou que aquilo tudo estava dentro dele. Chorou de emoção quando viu como o sangue circulava no corpo inteiro, desde o dedinho do pé, em vasinhos minúsculos, até veias grossas, onde seguia generoso, rumo ao coração.

Quando viu seu coração exaurido, foi acometido por uma tristeza. Como se tivesse uma super visão, viu sua veia entupida, aquela que o levou ao infarto. Era tudo tão pequeno e tão importante, tão necessário, tão fundamental. Assistia ao espetáculo de um corpo – o seu – mas que poderia ser o de qualquer ser vivente inventado pela criação universal.

Tudo isso funcionando e a gente não se dá conta – dizia para si mesmo, extasiado.

Observou como havia um jogo de pares no corpo. Dois olhos, dois ouvidos, dois buracos no nariz, tudo equilibrado em uma engenharia incrivelmente avançada, de uma inteligência superior.

Olhou seu pênis encolhido, vencido, ao lado dos testículos. Implicou com esta parte, uma bolas mal terminadas, murchas, um saco de pele flácida pendente nos dois lados. Ousou pensar que, se pudesse sugerir algo aos engenheiros biológicos, diria a eles que os culhões deveriam ser embutidos, saindo somente quando precisasse. “Seria mais estético” – considerou.

Sua consciência alerta o levou até o tórax. Deteve-se no pescoço, e ali ficou um tempinho valorizando esta parte do corpo.

A gente devia agradecer todos os dias por ter um pescoço que sustenta a nossa cabeça. Agradecer somente por isso, todos os dias. Imagine, se não fosse esse suporte, a cabeça penderia para frente e para trás, sem controle, seria um caos! – reforçava, em meio a lágrimas sinceras, diante da perfeição do projeto de um corpo físico que pela primeira vez reconhecia e admirava.

Contemplou o intestino. Que movimento, que dinâmica! Estava já tudo digerido, uma massa grossa, que procurava saída como se raciocinasse.

Findo o escâner, o chefe gritou, balançando a cabeça negativamente.

Tá bem estragado o rapaz, hein! Zero de manutenção. Depois, quando bate as botas, ficam se lamentando: ‘ah, morreu tao jovem, tinha tanta vida ainda…. ’ – diz com uma voz fininha de ironia.

Em um tom profissional, ordena a um dos auxiliares.

Dado, vamos começar pelo fígado, traz o médio DSH4.

O rapaz traz um fígado humano, sadio e novo, em uma bandeja.

Mas é igualzinho ao de uma vaca, de um boi. A gente é só um animal, bem feito, mas um animal – Mario observa se si para si.

Sempre cercado pelos seus ajudantes, o médico mecânico inicia o procedimento com uma especie de bisturi finíssimo, que no entanto faz as incisões com um raio de luz, sem corte. Retiram seu fígado. Admira-se do tamanho, e constata, olhando o fígado novo, como o seu era um órgão doente.

Hepatite gordurosa! – gritou o mestre, como a responder sua constatação.

Nesse caso, só mesmo a troca, professor? – perguntou um dos rapazes que, via-se agora, não eram simples ajudantes, mas aprendizes.

Como não, olha a situação dessa peça – com a luva sanguinolenta o mestre erguia o fígado salpicado de pontos escuros em elevação.

Mario tinha sentimentos variados. Um pouco de vergonha pelo estado do seu fígado e demais itens das suas entranhas. Um pouco de orgulho ferido ao ver seus órgãos tratados como ‘peças’. Um pouco de confusão ao ser operado, assim, nessa espécie de oficina mecânica (ou seria açougue?) do além. Sem falar nas dúvidas sobre o fato de poder assistir a tudo como observador.

Estava realmente confuso porque tinha certeza que estava morto, então, pra que trocar suas “peças”? Para entrar no céu melhorzinho? Era assim que a coisa funcionava?

Seu fígado novo foi instalado sem sutura, tudo na base de luzes que cicatrizavam de imediato e sem deixar marcas.

O mestre passava a outros órgãos. Alguns, como os rins, simplesmente eram retirados e colocados numa bancada, depois se ordenava, com palavras técnicas, a reparação. Os funcionários saiam e voltavam com estas peças, que não precisavam de troca, completamente restauradas.

Mario não fumava, mas viu que em seu pulmão havia muitos pontos pretos.

Isso aí é poluição do ar de cidade grande – explicou o professor. Dá uma polida, passa o lenitivo SIS1000 e me traz para encaixar.

Viu quando seu pulmão voltou rosado, em ótimo aspecto. Um dos últimos procedimentos foi a filtragem completa do seu sangue, que parecia grosso de início, e mais fino e transparente à medida que filtrava. Gotas de gordura caiam num recipiente.

Foi nesse momento que o médico do outro mundo, com uma espécie de agulha de crochê muito fina, removeu a artéria que havia matado Mario. No lugar, foi inserida outra, retirada de um saquinho transparente, dentre muitas que restavam numa gaveta de um material que parecia aço. A artéria nova foi unida com uma pistolinha que emitia um jato de luz violeta.

A revisão geral durou tempo suficiente para Mario se distrair e voltar à cena do velório. Chegou a rir com as piadas e fofocas que contavam na varanda, do café que circulava. A noite avançou e, a certo ponto, ninguém mais falava dele.

A esposa descansava reclinada num sofazinho e os filhos dormiam em seus quartinhos, porque as crianças não resistem ao sono. Havia um tédio no local, muita gente disfarçando o cansaço e a vontade de estar nas suas camas, longe daquela obrigação social. Mario deu uma olhada em si mesmo, inerte dentro do caixão com a barriga vultosa, a cara de bochechas gordas e pálidas e uma expressão surpresa de morte precoce.

Mas até ele se entediou e voltou à oficina.

Agora, estava de pé, amparado por braços robóticos (um deles segurando a cabeça) e os aprendizes aplicavam uma ducha em seu corpo, com um líquido azulado. O trabalho parecia concluído. Viu que o chefe já estava trabalhando em um outro corpo, mas não se interessou de olhar.

A sua consciência, ou seja, lá o que fosse que se mantinha desperta, comunicava que ele estava novo em folha.

Volta ao funeral.

É o começo da manha quando um padre chega para encomendar o corpo. As crianças têm os olhares caídos, estão angustiadas porque alguém já avisou que daqui a pouco terão que se despedir do papai. Falta pouco para o desfecho. Mas Mario sabe que seu corpo teve peças trocadas, incluindo a artéria assassina. Entra em desespero.

Vou ser enterrado vivo!

Talvez descubram anos mais tarde, quando o cemitério for escavado para algum empreendimento imobiliário. Vão perceber seu esqueleto virado de lado e as gerações futuras concluirão que algo evitável aconteceu ali.

Tenta gritar, mas cadê voz?

Apos os lamentos finais de despedida, dois rapazes do serviço funerário vedam o caixão. Mario se concentra no pulmão polido de fumaça e poluição. Faz um esforço sobre-humano e, afinal, consegue emitir uma respiração que deixa a tampa de vidro do caixão embaçada. Mas os rapazes da funerária estao distraídos, falam baixinho entre si acertando os detalhes do fechamento das dobradiças. Mario começa a sentir o incomodo da asfixia, agora não consegue nem mesmo pensar.

Um primo do morto, amigo de infância, é o primeiro a notar a tampa de vidro baça e fosca.

Estranho.

Recua alguns passos para olhar por outro ângulo. Diz, com duvida:

Parece um bafo… – diz, virando-se para quem está próximo.

Um bafo? Não pode ser.

A informação passa de boca em boca.

Diz que parece um bafo.

Bafo aonde?

No caixão.

No caixao? E quem fez isso?

Parece o que? Um balde?

Que balde, rapaz, um bafo, respiro…

Excitação no ambiente.

Que se chame um medico. Com urgência, máxima urgência. Que se retire a tampa, gente, rápido!

Mario respira, a face gorducha azulada, os olhos fechados, a aparência ainda é de defunto. Sente seu coração bater, de inicio fraco, depois com ritmo, a plena potência.

O médico pede às pessoas que se afaste, um pequeno tumulto se arma. Depois de um procedimento padrão, enfim, sentencia:

Está vivo.

Ouve-se gritos histéricos, uma tia velha ajoelha-se em prece, é um milagre. O disse me disse se espalha e chega até o pátio, a essa altura repleto de curiosos, gente atraída não se sabe de onde para aquela novidade rara.

Orientado pelo médico, Mario é retirado do caixão e passado a uma maca, o corpo flácido e pesado ainda sem a vida plena, mas vivo.

A última cena que tem de si mesmo é sendo conduzido para dentro da ambulância, recebendo soro e oxigênio, diante de uma pequena multidão estupefata que acompanha tudo com alvoroço e tagarelice.

Sente-se bem, tudo funciona perfeitamente bem dentro dele.

Senhor Mario, respire normalmente, consegue nos ouvir? – pergunta insistente um paramédico.

Acena com a cabeça. Levanta levemente a mão direita.

Sua consciência aterra, esta de novo entre os vivos. E é esta mesma consciência que jura, pela saúde dos pequenos, que a partir de então nunca mais deixará de dar à sua máquina a manutenção que os céus esperam.

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