A chave

A chave

Lá se iam mais de cinqüenta anos que dona Dita tinha a chave da sacristia da igreja. Da sacristia? Sim, porque a grande porta principal era fechada com um enorme ferrolho. Padres se alternavam, pessoas casavam, morriam, havia batismos, missa especial de Páscoa com a presença do bispo, Semana Santa. E dona Dita sempre ali, presente, colaborativa ao extremo e detentora da chave. Fora ela, somente o pároco a tinha.

A autonomia de abrir a igreja a qualquer hora foi lhe conferindo uma autoridade natural e máximo respeito pelas mulheres de meia idade, as de idade avançada, ou os jovens que tocavam na missa.

Na igreja, nada se fazia sem a sua palavra final. Mesmo os padres. Não houve um sequer que questionou o fato dela ter tanto poder. Isso se consolidou quando um jovem seminarista, um tanto distraído, perdeu a chave da sacristia. Como eram duas originais, uma se foi, a dela ficou.

– Dona Dita tem a outra chave – avisaram, logo depois de correr à sua casa.

Foi só um instante até se cobrir com o chale ocre de crochê, e lá se foi ela, com os quadris largos e andar pesado, mas ágil, muito segura de si, girar a chave da igreja. Naquele feriado haveria o primeiro dia da Novena, até que o chaveiro chegasse…

Nessa ocasião, uma cópia foi feita e entregue ao padre. Por que não se faria mais de uma cópia?

– Porque é como xerox, quando mais se reproduz menor a qualidade – justificava dona Dita que, com esse argumento, mantinha o poder exclusivo de detentora da segunda chave.

Os anos avançavam e dona Dita dedicava-se mais a e mais à igreja. Não descansava nem mesmo aos domingos. Depois da missa da manhã, lá ia ela preparar algum prato salgado, um suflê, uma lasanha, ou um doce gostoso para mandar à casa paroquial. Era a única que o fazia. Não que as outras não desejassem, mas devido ao pacto de respeito à hierarquia, não ousavam agradar o padre com seus quitutes.

Um dia, véspera da festa do padroeiro, o altar de São Roque era o único que ainda não estava pronto. Faltava a toalha que dona Dita tinha se encarregado de tirar manchinhas que maculavam o bordado secular. Toalha lavada, engomada e cheirosa, iria à igreja acertar essa última pendência antes que as portas se abrissem aos fiéis.

Quando, no entanto, abriu a caixinha de madeira no altar do santo, nada do saquinho de veludo cord e vinho onde mantinha o objeto precioso.

Embora a caixinha fosse pequena, fez o gesto inútil de virá-la de ponta cabeça. Nada. Fez um esforço sobre humano para lembrar onde estaria a chave. Correu os bolsos das saias, as gavetas, vasculhou por toda a parte. Voltava aos mesmos lugares duas, três vezes.

Exausta, ajoelhou e rezou. Chamou pela generosidade dos irmãos Cosme e Damião, por São Pedro, por São João, São Sebastião. Lembrou-se de Santo Expedito, de quem não era tão devota assim, mas que poderia ajudá-la porque era o santo das causas urgentes. Por fim, apelou à bondade de Nossa Senhora das Graças.

– Valei-me minha mãe!

Mas as orações vinham desconcentradas por causa do desespero. Sentia palpitações.

Fez uma nova busca por lugares improváveis, como dentro de uma caixinha de biscoito e no recipiente do açúcar. Começou a pensar em roubo, mas o dinheirinho da despesa e o cartão do banco estavam ali, porque levariam só a chave? Talvez para roubar a igreja, tem gente pra tudo nesse mundo…

À medida que não encontrava o símbolo de sua devoção, do seu poder, da sua fé, da sua vida, a taquicardia aumentava e agora vinha acompanhada de uma dor incômoda e imprecisa, que não sabia se do braço ou do peito. Sentiu a cabeça girar, a vista escurecer.

Caiu pesada no chão frio.

Nos últimos instantes, antes que o velho coração desse os últimos saltos aflitos lembrou-se, afinal, com clareza: a chave estava no bolso do casaco que usou na última noite da Novena e que tinha ido, no dia seguinte, para a lavanderia onde seria lavado a seco.

Texto: June Meireles

Foto: Sheila Bigelow por Pixabay

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