Pedra Bonita, de José Lins do Rego – A Jonestown do Nordeste brasileiro fanático

Pedra Bonita, de José Lins do Rego

A Jonestown do Nordeste brasileiro fanático

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Se queres ser universal, comece por pintar a sua aldeia – disse Tolstoi. José Lins do Rego, que nasceu na Paraíba, é um escritor que pintou a sua aldeia. Falou do que viveu, viu ou teve notícia. Mas defini-lo como romancista regionalista é pouco para um escritor de olhar tão apurado, sensível e crítico com as coisas da sua época e do seu lugar.

E atemporal, conforme veremos.

Embora não seja um dos seus romances mais festejados, gosto muito de Pedra Bonita. O romance de 1938 fala da seca, de pobreza, cangaceiros, ignorância e fanatismo religioso.

Um texto deliciosamente descritivo, que nos transporta a uma vila quente e tacanha do Nordeste brasileiro. Eis como abre o romance:

Antônio Bento estava tocando a primeira chamada para a missa das seis horas. Do alto da torre ele via a vila dormindo, a névoa do mês de dezembro cobrindo a tamarineira do meio da rua. Tudo calado. As primeiras badaladas do sino quebravam o silêncio violentamente. O som ia longe, atravessava o povoado para se perder pelos campos distantes, ia a mais de légua, levado por aquele vento brando.

O romance tem como protagonista Antônio Bento, um menino criado pelo padre da paróquia, seu padrinho, dado a este pelos pais que temiam que o garoto morresse de fome e sede. O leitor vai descobrindo, junto com Bentinho, porque o lugar onde ele nasceu é amaldiçoado pela população local.

Ali, em anos passados, houve um evento sangrento, com envolvimento direto da família de Bento. Uma carnificina em nome de Deus, com sacrifício de dezenas de virgens e crianças. A frente de tudo estava um líder religioso, louco varrido, mas com aquele carisma capaz de convencer multidões de que é um enviado por Deus para acabar com a fome, a pobreza, as injustiças e concretizar utopias.

Lins do Rego bebeu na fonte de uma história verdadeira. O massacre de Pedra Bonita aconteceu de fato no século XIX, no interior de Pernambuco. Os fanáticos da época eram movidos pelo chamado Sebastianismo, uma crença popular, de origem portuguesa.

Acreditava-se que dois enormes rochedos, que ainda hoje são visitados, escondiam um rei encantado, Dom Sebastião.

Mas como tudo tem um preço, para que o rei desencantasse e pudesse atuar com toda a sua força, as duas pedras deveriam ser banhados com sangue.

As ideias delirantes provinham de dois líderes religiosos em especial: João Antônio Vieira dos Santos e daquele que levou suas ideias pra frente: João Ferreira, que fundou a seita Reinado da Pedra Bonita.

As mulheres agarradas com os seus filhos sem querer dar e os pais soluçando. E o Filho de Deus no corpo de Antônio Ferreira gritando: Eu quero é o sangue dos inocentes. Deus pai me mandou para desenterrar os tesouros da terra e salvar o mundo. O filho de Deus foi cortando cabeça por cabeça e banhando a Pedra.

Muito longe dali, no estado de Indiana, nos Estados Unidos, nasceria décadas mais tarde, Jim Jones. Nos anos 1950, Jones – com uma cultura completamente diferente daquela do líder nordestino, pobre e analfabeto – fundou a seita Templo dos Povos. A história é longa e caso você não a conheça ou tenha interesse tem amplo material disponível na internet, incluindo documentários.

O que interessa aqui são os pontos que ligam Jim Jones a João Ferreira. O primeiro promoveu a matança de trezentas pessoas. O segundo, convenceu mais de novecentas pessoas a cometerem um “suicídio revolucionário” na Guiana no ano de 1978.

Ambos os líderes acreditavam que tinham uma missão especial dos céus a ser cumprida. Carismáticos, persuasivos, com boa comunicação e uma dose consciente de charlatanismo, formaram hordas de seguidores. Ambos criaram locais específicos para abrigar suas seitas. Ambos levantavam bandeiras de justiça contra o poder. O sacrifício em Pedra Bonita foi mais primitivo, com facões e pedras estourando o crânio das crianças. Em Jonestown, a morte foi mais a moda do seu tempo, “limpa”, por cianeto.

Se os líderes parecem ter afinidade nas suas ideias delirantes, os seguidores também tem, substancialmente, algo, ou melhor, tudo em comum.

São fanáticos.

A psicologia já se ocupou muito do que acontece na mente dessas pessoas. Em geral, iniciam aderindo incondicionalmente a uma causa, seja ela política, religiosa ou tudo junto. Distorções cognitivas, crenças irracionais, pensamentos fixos e acríticos fazem parte do pacote.

Convictos e delirantes, são acometidos por uma espécie de doença progressiva, que vai piorando e tornando suas ideias e atos sempre mais radicais. Ações insensatas, como invadir prédios públicos e quebrar tudo por não concordar com o resultado de uma eleição, por exemplo, se justifica em nome daquilo que acreditam cegamente.

Mas voltemos ao romance de Lins do Rego ao qual recomendo vivamente.

O massacre de Pedra Bonita ocorreu em 1838. O de Jonestown em 1978. José Lins do Rego lança o romance Pedra Bonita em 1938, no hiato de tempo entre os dois eventos. Com seu gênio inspirador, esse escritor fantástico pintou sua aldeia, foi além do domínio do tempo e fez de sua obra, de fato, um produto universal.

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