O próximo passo

A coisa ficou feia pro meu lado, praticamente apodreci vivo. No final não comia, não bebia, por falta de vontade e pela vergonha de terem que limpar a minha bunda descarnada. Nesse momento a minha podridão emergia e era terrível. Também começou a sair de dentro de mim um vômito verde, com um cheiro de lodo do inferno, que até a mim mesmo enojava.
Sentia um cansaço imenso, uma fraqueza do corpo e da alma, e a única vontade que me restava era a de mandar tudo as favas. De entregar os pontos mesmo, tipo, já deu. Até a vontade de beber tinha passado. Mas alguma coisa em mim se mantinha alerta, insistindo para que eu lutasse para ficar.
Até um momento em que eu estava estirado no sofá assistindo uma maratona na TV. Tinha um corredor que estava bem colocado, poderia se esforçar e checar entre os primeiros. Mas, de repente, desistiu e foi beber água. Um reportér correu louco para entrevistar, todo mundo queria saber porque ele parou.
Entre um gole e outro de água fresca, ele disse que não aguentava mais a fadiga e tudo o que o seu corpo pedia era que parasse. Não inventou essas desculpas dos atletas, que o tendão doeu, que sentiu a coxa, nada disso. Também não pediu desculpas aos torcedores. Alguém lhe deu uma garrafinha com isotonico e ele sorriu, porque isso era tudo que que ele precisava naquele momento.
Achei genial. Simplesmente, parar. Abrir mão da competição e depois apreciar os competidores colocando seus bofes para fora para chegar a um lugar que só existe na cabeça deles.
Não sei ao certo o que sou agora. Tenho a impressão de ser algo nebuloso, impreciso, vago. Não posso dizer que é uma condição dificil, é … curiosa. Ao contrário do que sempre ouvi falar, não me sinto em paz. A memória me trai, embora me lembre de muita coisa. Por exemplo, de como penei com a doença. De como obedeci quando insistiram em me manter naquilo a que chamam de vida.
Fizeram o velório, eu tinha amigos, apesar da minha alma torta. Pagaram o melhor que puderam e meu corpo detonado foi velado com certa dignidade.
Então, acordei num lugar, numa dimensão, sei lá o que. Um posto estranho, que me traz sensações bizarras, que não dá muito para descrever.
Também estou surpreso, pois nunca fui desses de acreditar em nada. Mas fato é que estou vivo de alguma maneira. Corpo não tenho, isso é certo. Olhos, braços, respiração. Esquece.
Me vem à mente trechos da minha vida, talvez os mais importantes. Coisas boas e ruins. Não me julgo. Sei das cagadas, das coisas pesadas, das ressacas sem fim. Das coisas bizarras como daquela vez que pedi a um travesti que comesse em uma tigela enquanto eu a devorava. Sei lá o que me passava pela cabeça, mas aquilo me excitava. E isso bastava.
Me sinto só, vazio, com algumas lembranças que vão chegando, passando, enquanto outras se aproximam, também passam, nesse ritmo. Não é um filme, é uma série descontinuada.
Não estou triste, nem apático, muito menos feliz.
Não vejo vultos, anjos, mentores hindus ou a avozinha me estendendo sua mãozinha macia.
Dentro de mim uma espécie de stand by, esperando o próximo passo.
Faz cinco dias que morri.
Texto: June Meireles
Foto de Ante Samarzija na Unsplash