Mosquito

Mosquito

Foi no curto espaço entre a casa e a academia. Uma espécie de mosquito entrou goela adentro em uma fração de segundos. O bichinho fez seu voo certeiro e foi se ocupar em algum lugar da minha faringe. Comecei a tossir para me livrar do incômodo. Passa um carro buzinando alto e aquela agonia na garganta misturada ao nojo de ter engolido um inseto. Todo aquele desgosto me lembrou que teria que ir ao banco no dia seguinte. O gerente havia ligado. Quando aquele número maldito aparecia no visor do celular, era problema. Limite ultrapassado, pedidos de renovação de cadastro e, dessa vez, mais alguma coisa que não tinha entendido muito bem.

Tem que vir pessoalmente à agência disse-me o gerente em um tom de ordem educada.

A agência ficava em um bairro distante. Quando ainda tinha carro era como um passeio, agora, ônibus nem pensar. Já pensou se me flagram?

Penso no táxi. Uma pequena fortuna e ainda se fosse para alguma coisa boa, mas é aquela chateação que começa já na entrada quando se tenta uma, duas, três vezes passar pela maldita porta giratória do banco e tira isso, tira aquilo, o guardinha te olhando, finalmente é o cinto ou umas moedinhas no fundo do bolso que impedem a passagem.

O mosquito continua arranhando a garganta, preciso de um copo d’água com urgência. Tem bebedouro na academia, mas até lá ainda são uns cinquenta metros.

Atravesso a pracinha e começo a tossir. Uma senhora passa empurrando um carrinho com uma criança de uns três anos. A menina chupa um sorvete que derrete e vai pingando na roupa. Primeiro: por que esta menina não está caminhando? O sol não está forte. Mimada. É isso, ou colo. Depois a senhora, que pode ser uma tia ou avó parece absorta nos próprios pensamentos e não percebe que a garota deixa escorrer o líquido viscoso e doce. Na minha agonia penso que são essas coisas que atraem mosquitos como aquele que entrou na minha boca. Tenho vontade de insultar a mulher.

Essa menina não anda? E esse sorvete nojento, a senhora sabe o quanto de açúcar tem nessa porcaria? Sabia que açúcar em excesso dá câncer e diabetes, e esse hábito ruim começa na infância por culpa de vocês, adultos ignorantes?

Engulo o insulto. A mulher para na banca de revista. Olha calmamente as manchetes enquanto o sorvete continua a escorrer na roupa da menina.

Pigarreio, mas aquilo que entrou continua lá. Lembro que em questão de minutos andava na rua tranquilamente, já tinha até esquecido o problema do banco porque o gerente tinha ligado de manhã e já era meio da tarde. O momento era de uma pequena trégua no dia, fixava a atenção em atravessar a rua sem ser atropelado porque não tem morte mais patética que essa.

E, de repente, o eterno devir que é a vida me presenteou com aquele mosquito, não se sabe trazido por quais ventos para um pouso infeliz nas minhas entranhas. Poderia estar agora sem esse incômodo que desperta emoções latentes como irritação e impaciência com o mundo.

Já não arranha tanto, mas fica uma sensação ruim, como uma feridinha microscópica e o fato de ter engolido aquela coisinha suja.

Apresso o passo, entro na academia, duas pessoas no bebedouro. Uma moça com top e gingoale, cintura fina, barriga à vista, curada pela malhação. Espera a vez com olhos mortos que parece não enxergar nada, nem ninguém. Tem as unhas compridas, pintadas de uma cor indefinida, mas que lhe dão imenso poder. Ao mesmo tempo – penso – ela não tem nada a oferecer ao mundo. Nem amor, nem ódio, só tédio e indiferença. Sou o terceiro na fila e não me sinto confortável, ali, em pé.

O rapaz continua a beber com a boca semiaberta, confiante. Lembra-me um desses documentários de bicho. Vejo um rinoceronte bebendo numa poça suja da África, quando já é tempo de seca e os animais disputam qualquer bocado de água que encontram. Emana testosterona, os braços são fortes e os dedos curtos e grossos seguram com precisão o botão do bebedouro. A moça seria uma gazela, ou melhor, uma avestruz. E eu um leão com a juba rala e algumas cicatrizes, que espera a uma distância segura e humilhante por um gole de água barrenta.

O rapaz bebe sem parar, calculo pelo menos um litro d’água. Imagino que logo depois estará no aparelho, com cara de nada, mergulhado num mundo a parte, fazendo careta para suportar a carga, pensando em nada porque pra levantar tanto peso não se pensa em nada, do contrário não consegue.

Finalmente termina, mas antes enche uma garrafinha fitness e sai sem olhar para a avestruz de olhar morto, cinturinha fina, pernas modeladas e pele viçosa. Muito menos para mim, cinquentão, malfeito de corpo, com gordura mal distribuída, a pele desbotada, músculos modestos, o que deve pensar?

Não pensa nada, não me viu – simples assim.

Chega a vez dela. Aciona o botão do bebedouro, tenta uma, duas, três vezes, a água contida. Não cogita em nenhum momento me pedir ajuda, ali, disponível. Até que a água sai, minguada. Ela entende que tem algum bloqueio, bebe o pouco que sai com paciência.

Poderia ter olhado para mim, criticado a academia, falaríamos do aumento da mensalidade e ainda assim falta água, isso criaria certa cumplicidade entre nós e algum dia, num sábado de manhã, no supermercado do bairro eu a encontraria, com a mãe, fazendo compras, e ela diria:

Oi, tudo bem?

E eu ouviria dizer à senhora, num tom mais baixo:

Meu colega da academia.

Isso bastaria para me deixar menos solitário e melhorar o meu dia.

E tudo começaria após eu mexer um pouco no botão, a água talvez esguichasse forte e potente, ela sorriria com gratidão e se inclinaria, segurando o cabelo com graça. Sorveria a água que eu, rei da selva, fui capaz de produzir. Mas ela sai, indiferente. No espelho imenso me vejo de relance, pareço mais calvo hoje.

Chega a minha vez. Tinha esquecido um pouco o incômodo do mosquito, agora já deve estar no estômago. Mal não faz, mas a garganta ainda arranha um pouco. Maldito bichinho que só pode ter sido um enviado do inferno para desencadear essa sequência de fatos desagradáveis.

Aperto o botão do bebedouro. Sai um filete de água ridículo e acaba. Insisto. Umas gotinhas e fim. Aquele rinoceronte tatuado bebeu uns três litros, dois na boca e um na maldita garrafinha verde neon com tampinha prata, que ele encheu até o limite. Sou tomado por um misto de cólera e depressão.

Resta-me a saliva, pigarreio com as gotinhas que consegui beber. Hidratou um pouco, problema do mosquito superado.

Começo pela esteira. Olho a fila de equipamentos distribuídos lado a lado. Todas ocupadas. Escuto a conversa de duas senhoras de meia-idade que andam a um passo lento.

Ele disse que me ama – diz uma delas, maquiada e com um coque alto, inadequado para a academia.

Então… Ele não teria necessidade de mentir – responde a amiga, sem convicção.

Basta uma fração de segundos e eu já sei que esse homem mente. Por que não adverte a amiga que esse cara é um engano, que pode ter qualquer interesse menos amor? Falsa.

Um rapaz magro e pálido corre veloz, a camisa empapada de suor. Está com fone de ouvido e olha a TV ao mesmo tempo. Aonde ele quer chegar com essa magreza e correndo desse jeito?

Enfim uma esteira vazia. Bem ao lado está um senhor desses que vão todos os dias à academia. É aposentado, tem tempo de sobra e gosta de puxar conversa. Quando estou bem, até que distrai o tédio da esteira. Mas hoje, por caridade, não. Antes que possa pensar ele me olha fixo e aponta a esteira com o indicador, como a dizer:

Venha, está vazia.

Agora é tarde. O gesto não é gentil. Ele investe em um ouvido para suas histórias. O rapaz magro, ao lado, bloqueou a comunicação, tem fone no ouvido e olha a TV. Sobrei eu pra Cristo.

A conversa é sempre positiva. Na última vez falava da neta, que conseguiu com mérito e muito jovem entrar na faculdade de Medicina.

Segue os pais. Minha nora é ginecologista e o meu filho cardiologista. A irmã mais moça é engenheira, está aí nesse empreendimento de alto padrão, ali no centro, em frente ao shopping, aquele de escritórios…

Maldita vida bem-sucedida.

Irrita-me profundamente a falta de sensibilidade dele para o meu angustiado estado de espírito. O episódio do mosquito, a água que acabou, a avestruz de olhar ausente, a juventude egoísta do animal que bebia, minha conta bancária, minha juba rala…o velho parece um androide senil programado para me atormentar.

Boa tarde, tudo bem? – cumprimento em tom formal, como dando a entender que hoje não estou para bate-papo.

Mas o bom humor insuportável e a vontade de tagarelar do velho ignoram qualquer sinal.

Tudo ótimo! E o feriado, viaja? – Responde com uma pergunta, uma estratégia para me forçar a falar, enquanto abre um sorriso de dentes enormes, artificiais, recobertos de porcelana.

A esteira começa a girar.

Não vou ter um instante de paz nesses vinte minutos de aquecimento.

Escrito por June Meireles com ilustração de André Caliman

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