A volta do tio Zezito

A volta do tio Zezito

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A prima Cleonice era dada a sonhos premonitórios. Um dia, enquanto raspava o leite em pó do fundo da xícara de café em um lanchinho delicioso na cozinha da família, ela disse como quem não quer nada:

Sonhei com tio Zezito. Tava muito bem e disse que quer voltar.

Houve um desconforto geral.

Não é que tio Zezito viajou. Ele morreu, faz mais de um ano, de uma doença estranha. Muita diarreia, fraqueza, os médicos não conseguiram identificar. Tumor benigno não era, muito menos maligno. Mas o fato é que enfraqueceu tanto que morreu.

Tio Zezito, solteirão, acumulou muita coisa com a sua loja de ferragens. Nunca foi de gastar, era contido em tudo. Não casou ou teve filhos. Deixou herança, o inventário começou a correr um dia depois do enterro. Na família tinha muita gente precisando das coisas, de fazer a vida andar para frente: irmãs, irmãos, sobrinhos, sobrinhas e agregados.

O processo ainda estava longe de ser concluído e tio Zezito não tinha deixado testamento, embora, com a certeza de dinheiro grosso, muitos dos planos e mudanças de vida já estivessem em andamento. Assim fica claro porque essa história de tio Zezito voltar gerava tanto incômodo.

O pesadelo se concretizava. Um domingo de manhã, voltando da missa, uma tia velha, mãe da prima Cleonice, passou na casa da família e deu a notícia.

Zezito vai voltar. Não sei o dia certo, mas não demora.

A notícia desestabilizou o almoço, o bechamel da lasanha parecia rançoso.

Não tinham o que fazer. A expectativa da volta era sufocante, tantos sonhos ameaçados. Tio Zezito sempre foi apegado às coisas dele, haveria de implicar com o arrendamento da loja, com a venda dos imóveis, com o anúncio de venda dos terrenos, com a distribuição dos objetos pessoais de valor…

Demoraria? Vinha para ficar? As dúvidas provocavam falta de sono, nervosismo, bate bocas.

A coisa se deu no domingo seguinte. Pelo jeito como soou a aldrava da velha porta de madeira, todos sabiam: era ele.

Tio Zezito chegou meio pálido, mas quase impecável, apenas o terno cinza que havia sido sepultado ligeiramente amarrotado.

Agora, vejam só. Quem correu para abrir a porta foi Anselmo, casado com uma das herdeiras. Ficou branco e fez uma cara péssima quando viu o anelão de ouro no dedo do tio Zezito. O susto tinha motivo. Tio Zezito não tinha, como era seu desejo explícito, no leito de morte, sido enterrado com o anel comprado em uma ourivesaria em Lisboa, anos atrás. Anel de ouro, 19,2K, cravejado com esmeralda e oito diamantes, conforme avaliação feita antes da joia ser negociada. Mesmo subavaliado rendeu um bom dinheiro, é bom que se diga.

Quando soube que tio Zezito voltaria, o contraparente pensou até em providenciar uma cópia fake, baseada em uma foto. Era certo que o tio perguntaria por que não cumpriram o seu desejo. Alegaria esquecimento, sabe como é funeral, tanta providência… Mas o anel estaria ali, intocado. Não houve, porém, tempo hábil para encontrar um bom profissional em réplicas e a coisa ficou assim mesmo.

Anselmo engoliu em seco, mas disfarçou, embora tenha sentido uma raiva aguda do que considerou um requinte sádico do velho. Tio Zezito também não tocou no assunto do anel, que parecia um pouco apertado no seu dedo grosso, provavelmente inchado com o processo de morte. A recepção não foi calorosa, ali circulava uma atmosfera tão falsa quanto o amarelo vivo de um anel de ouro falso, embora demonstrassem um forçado entusiasmo em revê-lo.

Seguiu-se ao almoço. Tio Zezito, que sempre foi de poucas palavras, falou e comeu pouco. Bebeu muita água, como se tivesse uma sede acumulada. Comentou como a primavera estava ainda fria, falou de coisas práticas tipo impostos, um comentário ou outro de política, assim, sem grande interesse. Não perguntou da loja nem dos outros bens, do investimento no banco, nada. Mas era uma questão de tempo, daqui a pouco manifestaria seu apego com aquilo que deixou e começariam os problemas. Não falou se ficaria muito tempo, também ninguém perguntou. Soaria mal.

Na família todos comeram sem sentir o gosto da carne assada que, além de tudo, estava meio ressequida. Ninguém perguntou como era o outro lado, se existe mesmo o tal do túnel, se tem anjos que esperam, se tio Zezito tinha visto parentes mortos, se existe mesmo as colônias espirituais organizadas como cidades, o que é a matéria escura ou se os buracos negros são passagem para outro universo – e a mais importante de todas: se Deus existe ou tudo não passa de uma fantasia coletiva para amenizar o peso da vida.

É bem possível que tio Zezito, pouco inclinado a subjetividades, filosofias ou religião, não tivesse todas essas respostas. Mas alguma coisa ele haveria de contar, porque é quase impossível ultrapassar a dura linha da matéria sem que, numa volta insólita, não se tenha nada a dizer. E independente dele ter ou não informações preciosas, numa situação normal haveria tanta coisa instigante para perguntar que as perguntas sairiam atropeladas, com todos falando ao mesmo tempo.

Mas nenhum se mostra curioso ou fascinado. O que se tem para resolver é tão sério que as pessoas não pensam nessas coisas etéreas. Estão concentradas naquilo que foi decidido na reunião, a portas fechadas, dois dias antes, e que buscou uma solução definitiva para o problema: tramar, sem deixar suspeita, a morte do Tio Zezito. Desta vez, pra valer.

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